Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz Não te quero ter porque em meu ser está tudo terminado. Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado. Eu deixarei ... tu irás e encostarás a tua face em outra face Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite Porque eu encostei a minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado. Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada. Vinicius de Moraes

Idolatria

:Não chame o meu amor de Idolatria Nem de Ídolo realce a quem eu amo, Pois todo o meu cantar a um só se alia, E de uma só maneira eu o proclamo. É hoje e sempre o meu amor galante, Inalterável, em grande excelência; Por isso a minha rima é tão constante A uma só coisa e exclui a diferença. 'Beleza, Bem, Verdade', eis o que exprimoNão chame o meu amor de Idolatria Nem de Ídolo realce a quem eu amo, Pois todo o meu cantar a um só se alia, E de uma só maneira eu o proclamo. É hoje e sempre o meu amor galante, Inalterável, em grande excelência; Por isso a minha rima é tão constante A uma só coisa e exclui a diferença. 'Beleza, Bem, Verdade', eis o que exprimo; 'Beleza, Bem, Verdade', todo o acento; E em tal mudança está tudo o que primo, Em um, três temas, de amplo movimento. 'Beleza, Bem, Verdade' sós, outrora; Num mesmo ser vivem juntos agora. William Shakespeare ; 'Beleza, Bem, Verdade', todo o acento; E em tal mudança está tudo o que primo, Em um, três temas, de amplo movimento. 'Beleza, Bem, Verdade' sós, outrora; Num mesmo ser vivem juntos agora. William Shakespeare

SONETO

Se te censuram, não é teu defeito, Porque a injúria os mais belos pretende; Da graça o ornamento é vão, suspeito, Corvo a sujar o céu que mais esplende. Enquanto fores bom, a injúria prova Que tens valor, que o tempo te venera, Pois o Verme na flor gozo renova, E em ti irrompe a mais pura primavera. Da infância os maus tempos pular soubeste, Vencendo o assalto ou do assalto distante; Mas não penses achar vantagem neste Fado, que a inveja alarga, é incessante. Se a ti nada demanda de suspeita, És reino a que o coração se sujeita WILIAM SHAKESPEARE
Solano, vento forte da África" De todos os escritores negros, ligados à coletividade negra brasileira, o que deixou presença mais forte foi Solano Trindade. Foi o primeiro a escrever, com especificidade, para negros, naquele tempo. Pagou o preço disso, e como! Solano Trindade era poeta, pintor, teatrólogo, ator e folclorista. Nasceu no dia 24 de julho de 1908, no bairro de São José, no Recife, capital de Pernambuco. Era filho de Manuel Abílio, mestiço, sapateiro, e da quituteira Merença (Emerenciana). Estudou até completar um ano de desenho no Liceu de Artes e Ofício. A partir de então, começa a escrever. Solano Trindade foi o poeta da resistência negra por excelência. - Eita negro! quem foi que disse que a gente não é gente? quem foi esse demente, se tem olhos não vê... - Que foi que fizeste mano pra tanto falar assim? - Plantei os canaviais do nordeste - E tu, mano, o que fizeste? Eu plantei algodão nos campos do sul pros homens de sangue azul que pagavam o meu trabalho com surra de cipó-pau. - Basta, mano, pra eu não chorar, E tu, Ana, Conta-me tua vida, Na senzala, no terreiro - Eu... cantei embolada, pra sinhá dormir, fiz tranças nela, pra sinhá sair, Linda Negra Naquela noite ficou o teu olhar branco vagando no escuro entre ternura e medo teus olhos grandes dançavam como loucos na música do silêncio Eu era animal e poeta a procurar em ti o que perdi em outra Linda negra. Solano Trindade, "Cantares ao Meu Povo" Fonte: O Negro Escrito, de Oswaldo de Camargo Sua "carreira" como militante inicia-se, de fato, a partir de 1930, quando começa a compor poemas afro-brasileiros e, já integrado nesta corrente, participa em 1934 do I e II Congresso Afro-Brasileiro, no Recife e Salvador. Em 1936 fundou a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-brasileiro, que tinha o objetivo de divulgar os intelectuais e artistas negros. Em 1940 transfere-se para Belo Horizonte. Depois chega ao Rio Grande do Sul, fixando-se por um tempo em Pelotas, onde funda com o poeta Balduíno de Oliveira um grupo de arte popular. Esta foi sua primeira tentativa de criar um teatro do povo, o que não se concretizou devido à enchente de 1941, que carregou todo o material. Voltou então para Recife, indo logo depois para o Rio, onde no "Café Vermelhinho", detém-se a discutir e a conversar com jovens poetas e intelectuais, artistas de teatro, políticos e jornalistas. Ali fez sucesso. Em 1944, edita o livro "Poemas de uma vida simples", onde se encontra o seu declamadíssimo "Trem sujo da Leopoldina". Em 1945 funda o Comitê Democrático Afro-brasileirom, com Raimundo Souza Dantas, Aladir Custódio e Corsino de Brito. Em 1954 está em São Paulo, criando na cidade de Embu, um pólo de cultura e tradições afro-americanas. Em São Paulo também funda o Teatro Popular Brasileiro – TPB, onde desenvolveu uma intensa atividade cultural voltada para o folclore e para a denúncia do racismo. Em 1955 viaja para a Europa, com o TPB, onde dá espetáculos de canto e dança. Em 1958 edita "Seis tempos de poesia"; em 1961, "Cantares ao meu povo" (com uma reunião de poemas anteriores). Solano Trindade faleceu no Rio de janeiro, em 19 de fevereiro de 1974. Sua obra, não! Continuará eternamente viva, como que escrita com brasas na pele escura de todo afrodescendente, mesmo que não queira, mesmo que não saiba...
TEM GENTE COM FOME Trem sujo da Leopoldina correndo correndo parece dizer tem gente com fome tem gente com fome tem gente com fome Piiiiii Estação de Caxias de novo a dizer de novo a correr tem gente com fome tem gente com fome tem gente com fome Vigário Geral Lucas Cordovil Brás de Pina Penha Circular Estação da Penha Olaria Ramos Bom Sucesso Carlos Chagas Triagem, Mauá trem sujo da Leopoldina correndo correndo parece dzier tem gente com fome tem gente com fome tem gente com fome Tantas caras tristes querendo chegar em algum destino em algum lugar Trem sujo da Leopoldina correndo correndo parece dizer tem gente com fome tem gente com fome tem gente com fome Só nas estações quando vai parando lentamente começa a dizer se tem gente com fome dá de comer se tem gente com fome dá de comer se tem gente com fome dá de comer Mas o freio de ar todo autoritário manda o trem calar Psiuuuuuuuuuuu

ÚLTIMA QUIMERA

Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão - esta pantera - Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija!

JOSÉ

JOSÉ E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio - e agora? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José! Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?

MORRO DO QUE HÁ NO MUNDO

Cecília Meireles Morro do que há no mundo: do que vi, do que ouvi. Morro do que vivi. Morro comigo, apenas: com lembranças amadas, porém desesperadas. Morro cheia de assombro por não sentir em mim nem princípio nem fim. Morro: e a circunferência fica, em redor, fechada. Dentro sou tudo e nada.

ROTINA

Rotina... Estou cansada de trabalhar e ver todos os dias as mesmas pessoas no caminho; passar horas trabalhando. Chego em casa e meu marido sempre do mesmo jeito, com a mesma disposição, a mesma comida para o jantar. Entro no banho e logo ele começa a reclamar. Quero descansar e assistir minha novela, mas meus filhos não me deixam, porque querem brincar comigo e conversar. Não entendem que estou cansada. Meus pais também me irritam algumas vezes e entre trabalho, marido, filhos, pais e cuidar da casa, eles me deixam louca. “Quero Paz”. A única coisa boa é dormir. Ao fechar os olhos sinto um grande alívio, me esqueço de tudo e de todos. - Ao dormir ... - “Olá, vim te ajudar”. - Quem é você? Como entrou? - Sou um servo de Deus. “Ele disse que ouviu suas queixas e que você tem razão”. - Isso não é possível, para isso eu teria que estar... - Isso, você está. “Não se preocupará mais em ver sempre as mesmas pessoas, nem por agüentar o seu marido com suas reclamações e sua disposição, nem seus filhos que te irritam, nem terá que escutar os conselhos de seus pais e não terá mais qualquer casa para cuidar.” - Mas... Que acontecerá com todos? Com meu trabalho? Minha casa ? - Não se preocupe. “No seu trabalho já contrataram outra pessoa para o seu lugar e ela certamente está muito feliz porque estava sem trabalho”. - E meu marido, meus filhos? - “Ao seu marido foi dado uma boa mulher que o quer bem, o respeita e o admira por suas qualidades, aceita seus gostos e defeitos e todas as suas reclamações. Além disso, ela se preocupa com seus filhos como se fossem filhos dela. De certo, tem uma emoção muito grande já que é estéril. Por mais cansada que chegue do trabalho, dedica tempo a brincar com eles e para agradar seu marido. Todos estão muito felizes”. - Mas não quero isso! - “Sinto muito, a decisão foi tomada”. - Mas isso significa que jamais voltarei a beijar o rostinho dos meus filhos, nem dizer “eu te amo” ao meu marido e mostrar a eles o quanto são importantes na minha vida, nem dar um abraço nos meus pais. - Não, não quero morrer, quero viver, envelhecer junto ao meu marido, fazer a viagem que há muito planejamos, colocar aquela roupa que comprei há mais de 1 ano, levar meus filhos ao passeio que sempre prometi. Não quero morrer ainda... - “Mas era o que você queria”... Descansar. “Agora já tens seu descanso eterno, durma para sempre”. - Não, não quero, por favor, Deus! - ..... “Que aconteceu amor? Teve um pesadelo?” Disse meu marido me acordando com paciência e carinhosamente. - Sim, um pesadelo horriv..... Parei a frase ao meio, olhei em seu rosto, seu semblante preocupado comigo, ali do meu lado, e então, sorrindo falei: - Não meu amor.... Não tive pesadelo nenhum, tive um encontro com Deus, que nos adora, e que acaba de me dar uma nova oportunidade.

Responsabilidade

'O que fazer?', é o que se perguntam, em unanimidade, os poderosos e os subjugados, os revolucionários e os activistas sociais, entendendo sempre com essa questão o que os outros devem fazer; ninguém se pergunta quais são as suas próprias obrigações

Violência

Querer saber - o que parece tão difícil - se não é errado, entre tantos seres vivos que praticam a violência, ser o único ou um dos poucos não violentos, não é diferente de querer saber se seria possível ser sóbrio entre tantos embriagados, e se não seria melhor que todos começassem logo a beber

A Nossa Crise Mental

Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos — político, moral e intelectual? A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico. Todo o povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente. A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo. O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita — como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova — o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima). Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si-próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise. As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise política é o sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral é que desde 1580 — fim da Renascença em nós e de nós na Renascença — deixou de haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga portuguesa, que é mais moderno que o português e é o resultado de estarem interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência disto. Respondi, creio, à sua pergunta. Se V. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer. Fernando Pessoa, in 'Portugal entre Passado e Futuro'

livre arbítrio

A ideia de livre arbítrio, na minha opinião, tem o seu princípio na aplicação ao mundo moral da ideia primitiva e natural de liberdade física. Esta aplicação, esta analogia é inconsciente; e é também falsa. É, repito, um daqueles erros inconscientes que nós cometemos; um daqueles falsos raciocínios nos quais tantas vezes e tão naturalmente caímos. Schopenhauer mostrou que a primitiva noção de liberdade é a "ausência de obstáculos", uma noção puramente física. E na nossa concepção humana de liberdade a noção persiste. Ninguém toma um idiota, ou louco por responsável. Porquê? Porque ele concebe uma coisa no cérebro como um obstáculo a um verdadeiro juízo. A ideia de liberdade é uma ideia puramente metafísica. A ideia primária é a ideia de responsabilidade que é somente a aplicação da ideia de causa, pela referência de um efeito à sua Causa. "Uma pessoa bate-me; eu bato àquela em defesa." A primeira atingiu a segunda e matou-a. Eu vi tudo. Essa pessoa é a Causa da morte da outra." Tudo isto é inteiramente verdade. Assim se vê que a ideia de livre arbítrio não é de modo algum primitiva; essa responsabilidade, fundada numa legítima mas ignorante aplicação do princípio de Causalidade é a ideia realmente primitiva. Ao princípio o homem não é consciente senão da liberdade física. Ao princípio não há um tal estado metafísico da mente. A ideia de liberdade apareceu pela razão, é metafísica e, portanto, sujeita a erro. A opinião popular, pelo que vimos, põe o elemento real de liberdade moral no juízo, na consideração, no poder de percepção, para distinguir o bem do mal, para os discutir mentalmente. Mas esta afirmação é falsa. A concepção popular é esta: esse juízo é o que considera uma coisa, decidindo se ela é boa ou má. Na opinião popular é esta faculdade que nos diz que uma coisa é boa ou má; é, pensa-se, o elemento do bem em nós. O povo pensa que se eu noto que uma ação é má e não obstante eu a pratico, eu sou réu do mal. A ideia de liberdade moral não é de modo nenhum primitiva, nem mesmo de hoje na mente popular, ou hipoteticamente, em qualquer mente culta que ignore inteiramente a questão. É uma ideia adquirida pela razão, uma ideia filosófica. Primitivamente não há nem senso moral de liberdade nem um senso de determinismo. É inútil pensar que um selvagem tenha um senso de liberdade moral. O homem é um animal perfeito e o único senso primitivo neste caso é o senso de liberdade física. "Eu posso fazer o que quero." Disto não há dúvida, evidentemente. Até agora eu não estou prisioneiro, nem paralítico, nem ligado por qualquer obstáculo físico, eu sou livre: posso fazer o que quero. "Mas posso eu querer o que quero e não querer nada mais?" Eis aqui a grande questão. Ora esta inconsciência primitiva, para que lado pende mais: para o livre arbítrio ou para o determinismo? Fernando Pessoa, in 'Ideias Filosóficas'

SE VOCE

"Se tenho alguem, deixo-a livre, se ficar comigo é pq me ama, se for embora, é pq nunca a tive

Vinícius de Moraes

Rosário E eu que era um menino puro Não fui perder minha infância No mangue daquela carne! Dizia que era morena Sabendo que era mulata Dizia que era donzela Nem isso não era ela Era uma môça que dava. Deixava... mesmo no mar Onde se fazia em água Onde de um peixe que era Em mil se multiplicava Onde suas mãos de alga Sobre o meu corpo boiavam Trazendo à tona águas-vivas Onde antes não tinha nada. Quanto meus olhos não viram No céu da areia da praia Duas estrelas escuras Brilhando entre aquelas duas Nebulosas desmanchadas E não beberam meus beijos Aqueles olhos noturnos Luzinho de luz parada Na imensa noite da ilha! Era minha namorada Primeiro nome de amada Primeiro chamar de filha Grande filha de uma vaca! Como não me seduzia Como não me alucinava Como deixava, fingindo Fingindo que não deixava! Aquela noite entre todas Que cica os cajus! travavam! Como era quieto o sossego Cheirando a jasmim-do-Cabo! Lembro que nem se mexia O luar esverdeado. Lembro que longe, nos longes Um gramofone tocava, Lembro dos seus anos vinte Junto aos meus quinze deitados Sob a luz verde da lua. Ergueu a saia de um gesto Por sobre a perna dobrada Mordendo a carne da mão Me olhando sem dizer nada Enquanto jazente eu via Como uma anêmona n'água A coisa que se movia Ao vento que a farfalhava. Toquei-lhe a dura pevide Entre o pêlo que a guardava Beijando-lhe a coxa fria Com gosto de cana-brava. Senti, à pressão do dedo Desfazer-se desmanchada Como um dedal de segredo A pequenina castanha Gulosa de ser tocada. Era uma dança morena Era uma dança mulata Era o cheiro de amarugem Era a lua cor de prata Mas foi só aquela noite! Passava dando risada Carregando os peitos loucos Quem sabe pra quem, quem sabe! Mas como me perseguia A negra visão escrava Daquele feixe de águas Que sabia ela guardava No fundo das coxas frias! Mas como me desbragava Na areia mole e macia! A areia me recebia E eu baixinho me entregava Com medo que Deus ouvisse Os gemidos que não dava! Os gemidos que não dava Por amor do que ela dava Aos outros de mais idade Que a carregaram da ilha Para as ruas da cidade. Meu grande sonho da infância Angústia da mocidade.

Leon Tolstoi

Admitir que a vida da humanidade possa ser dirigida pela razão é negar toda possibilidade de vida." Leon Tolstoi

Álvares de Azevedo

Ao sol do meio-dia eu vi dormindo Na calçada da rua um marinheiro, Roncava a todo o pano o tal brejeiro Do vinho nos vapores se expandindo! Além um espanhol eu vi sorrindo, Saboreando um cigarro feiticeiro, Enchia de fumaça o quarto inteiro... Parecia de gosto se esvaindo! Mais longe estava um pobretão careca De uma esquina lodosa no retiro Enlevado tocando uma rabeca!... Venturosa indolência! não deliro Se morro de preguiça... o mais é seca! Desta vida o que mais vale um suspiro?

desejo

"Desejo primeiro que você ame, E que amando, também seja amada. E que se não for, seja breve em esquecer. E que esquecendo, não guarde mágoa. Desejo, pois, que não seja assim, Mas se for, saiba ser sem desesperar. Desejo também que tenha amigos, Que mesmo maus e inconseqüentes, Sejam corajosos e fiéis, Não com os que erram pouco, porque isso é fácil, Mas com os que erram muito e irremediavelmente, E que fazendo bom uso dessa tolerância, Você sirva de exemplo aos outros. Desejo que você, sendo jovem, Não amadureça depressa demais, E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer E que sendo velho, não se dedique ao desespero. Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e É preciso deixar que eles escorram por entre nós. Desejo por sinal que você seja triste, Não o ano todo, mas apenas um dia. Mas que nesse dia descubra Que o riso diário é bom, O riso habitual é insosso e o riso constante é insano. Desejo que você descubra, Com o máximo de urgência, Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos, Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta. Desejo ainda que você afague um gato, Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro Erguer triunfante o seu canto matinal Porque, assim, você se sentirá bem por nada. E que pelo menos num deles Você possa confiar sem duvidar. E porque a vida é assim, Desejo ainda que você tenha inimigos. Nem muitos, nem poucos, Mas na medida exata para que, algumas vezes, Você se interpele a respeito De suas próprias certezas. E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo, Para que você não se sinta demasiado seguro. Desejo depois que você seja útil, Mas não insubstituível. E que nos maus momentos, Quando não restar mais nada, Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé. Desejo ainda que você seja tolerante Não com os que erram pouco, porque isso é fácil, Mas com os que erram muito e irremediavelmente, E que fazendo bom uso dessa tolerância, Você sirva de exemplo aos outros. Desejo que você, sendo jovem, Não amadureça depressa demais, E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer E que sendo velho, não se dedique ao desespero. Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e É preciso deixar que eles escorram por entre nós. Desejo por sinal que você seja triste, Não o ano todo, mas apenas um dia. Mas que nesse dia descubra Que o riso diário é bom, O riso habitual é insosso e o riso constante é insano. Desejo que você descubra, Com o máximo de urgência, Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos, Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta. Desejo ainda que você afague um gato, Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro Erguer triunfante o seu canto matinal Porque, assim, você se sentirá bem por nada. Desejo também que você plante uma semente, Por mais minúscula que seja, E acompanhe o seu crescimento, Para que você saiba de quantas Muitas vidas é feita uma árvore. Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro, Porque é preciso ser prático. E que pelo menos uma vez por ano Coloque um pouco dele Na sua frente e diga "Isso é meu", Só para que fique bem claro quem é o dono de quem. Desejo também que nenhum de seus afetos morra, Por ele e por você, Mas que se morrer, você possa chorar Sem se lamentar e sofrer sem se culpar. Desejo por fim que você sendo homem, Tenha uma boa mulher, E que sendo mulher, Tenha um bom homem E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes, E quando estiverem exaustos e sorridentes, Ainda haja amor para recomeçar. E se tudo isso acontecer, Não tenho mais nada a te desejar". Poema de Victor Hugo

Tudo quanto penso,

Tudo quanto penso, Tudo quanto sou É um deserto imenso Onde nem eu estou. Extensão parada Sem nada a estar ali, Areia peneirada Vou dar-lhe a ferroada Da vida que vivi. [...] Fernando Pessoa, 18-3-1935

Terra

Terra Quando eu me encontrava preso Na cela de uma cadeia Foi que eu vi pela primeira vez As tais fotografias Em que apareces inteira Porém lá não estavas nua E sim coberta de nuvens Terra, Terra Por mais distante O errante navegante Quem jamais te esqueceria? Ninguém supõe a morena Dentro da estrela azulada Na vertigem do ciname Mando um abraço pra ti Pequenina como se eu Fosse o saudoso poeta E fosses a Paraíba Terra, Terra, Por mais distante O errante navegante Quem jamais te esqueceria? Eu estou apaixonado Por uma menina terra Signo do elemento terra Do mar se diz terra à vista Terra para o pé firmeza Terra para a mão carícia Outros astros lhe são guia Terra, Terra, Por mais distante O errante navegante Quem, jamais, te esqueceria? Eu sou um leão de fogo Sem ti me consumiria A mim mesmo eternamente E de nada valeria Acontecer de eu ser gente E gente é outra alegria Diferente das estrelas Terra, Terra, Por mais distante O errante navegante Quem, jamais, te esqueceria? De onde num tempo num espaço Que a força mande coragem Pra gente te dar carinho Durante toda a viagem Que realizas ao nada Através do qual carregas O nome da tua carne Terra, Terra, Por mais distante O errante navegante Quem, jamais, te esqueceria? Nas sacadas dos sobrados Da velha São Salvador Há lembranças de donzelas Do tempo do imperador Tudo tudo na Bahia Faz a gente querer bem A Bahia tem um jeito Terra, Terra Por mais distante O errante navegante Quem, jamais, te esqueceria? Terra...

Ausênciaा,Vinícius de Moraes

Ausência Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces. Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto. No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz. Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado. Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada. Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado. Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face. Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada. Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite. Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa. Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço. E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado. Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos. Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir. E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas. Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

A rosa de Hiroxima

Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroxima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A anti-rosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada. Vinícius de Moraes

poesia ,Shakespeare.

O tempo é muito lento para os que esperam Muito rápido para os que tem medo Muito longo para os que lamentam Muitos curtos para os que festejam Mas, para os que amam, o tempo é eterno Romantismo, em particular, aclamou a genialidade de Shakespeare.

Soneto da separação

De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto. De repente da calma fez-se o vento Que dos olhos desfez a última chama E da paixão fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama. De repente, não mais que de repente Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente. Fez-se do amigo próximo o distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente. VINÍCIUS DE MORAES

Eu não existo sem você

Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim Que nada nesse mundo levará você de mim Eu sei e você sabe que a distância não existe Que todo grande amor Só é bem grande se for triste Por isso, meu amor Não tenha medo de sofrer Que todos os caminhos Me encaminham pra você Assim como o oceano Só é belo com luar Assim como a canção Só tem razão se se cantar Assim como uma nuvem Só acontece se chover Assim como o poeta Só é grande se sofrer Assim como viver Sem ter amor não é viver Não há você sem mim Eu não existo sem você VINÍCIUS DE MORAES

Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. (Até um dia meu anjo) vinícius de moraes

CONSOLO NA PRAIA CARLOS DRUMMOND

(são poesias,admirável,digna de reflexão) Vamos, não chores... A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu. O primeiro amor passou. O segundo amor passou. O terceiro amor passou. Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo. Não tentaste qualquer viagem. Não possuis casa, navio, terra. Mas tens um cão. Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca cicatrizam. Mas, e o 'humour'? A injustiça não se resolve. À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido. Mas virão outros. Tudo somado, devias precipitar-te, de vez, nas águas. Estás nu na areia, no vento... Dorme, meu filho.

Poesia: Carlos Drummond de Andrade

VIDA MENOR "A fuga do real, ainda mais longe a fuga do feérico, mais longe de tudo, a fuga de si mesmo, a fuga da fuga, o exílio sem água e palavra, a perda voluntária de amor e memória, o eco já não correspondo ao apelo, e este fundindo-sea mão tornando-se enorme e desaparecendo desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis, senão inúteis, a desnecessidade do canto, a limpeza da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo. Não a morte, contudo. Mas a vida: captada em sua forma irredutível, já sem ornaio ou comentário melódico, vida a que aspiramos como paz no cansaço (não a morte), vida mínima, essencial; um início; um sono; menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia; o se possa desejar de menos cruel: a vida em que o ar, não respirado, mas me envolva; nenhum gasto de tecidos; ausência deles; confusão entre manhã e tarde, já sem dor, porque o tempo não mais se divide em seções; o tempo elidido, domado. Não o morto nem o eterno ou o divino, apenas o vivo, o pequenino calado, indiferente e solitário vivo. Isso eu procuro." (A Rosa do povo)

Poesia de carlos Drummonde de Andrade

faça um breve,comentário

(diga-me o que voce entendeu)

A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjôo? Posso, sem armas, revoltar-me? Olhos sujos no relógio da torre: Não, o tempo não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse. Em vão me tento explicar, os muros são surdos. Sob a pele das palavras há cifras e códigos. O sol consola os doentes e não os renova. As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. Uma flor nasceu na rua! Vomitar esse tédio sobre a cidade. Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado. Nenhuma carta escrita nem recebida. Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres mas levam jornais E soletram o mundo, sabendo que o perdem. Crimes da terra, como perdoá-los? Tomei parte em muitos, outros escondi. Alguns achei belos, foram publicados. Crimes suaves, que ajudam a viver. Ração diária de erro, distribuída em casa. Os ferozes padeiros do mal. Os ferozes leiteiros do mal. Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. Ao menino de 1918 chamavam anarquista. Porém meu ódio é o melhor de mim. Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima. Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura. Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.